sexta-feira, 20 de março de 2015

Filha da terra















Aos 13 anos ela foi convidada pra ir pra capital, São Luís, morar na casa de uma família e estudar. Era boa a proposta, foi o que pensou ela e a mãe, afinal, ali no interior a menina teria poucas chances além de ser dona de casa. Mas a ida pra cidade significou pouco estudo em muito trabalho. Em troca de moradia, alimentação e roupa ela arrumava a casa e cozinhava.


A quilombola Roseane Costa, hoje com 41 saiu assim do povoado de Itamatatiua, sob a promessa de estudar e 'ser alguém' foi trabalhar sem receber, como era muito comum na época. Aos 23 anos ela foi ainda pro Rio de Janeiro. Lá trabalhou numa cafeteria e se virou num bico aqui outro ali pra pagar o curso de letras na Universidade Gama e Souza, "o dinheiro do pagodinho faltava", brinca ela.

O sonho era voltar pra casa, pro seu povoado querido. Hoje, Roseane é a única professora 'filha da terra', os outros são todos de municípios vizinhos. Ela não, atravessa a rua e tá no trabalho. Quer dizer, menos no final de semana, nestes dias, ela pega a moto, viaja uma hora de ferry e pronto "vou lá rodar a saia no tambor", em São Luís.

Essa pequena aí



Texto: Ana Mendes
Fotos: Ana Mendes (cor) e Valda (p&b)

A espera de se consultar com a nova médica, Dr. Laura Martins, diversas pessoas encheram o pequeno espaço da capela da comunidade Arenhegaua. É ali mesmo que a equipe de enfermeiras, agente comunitário e médica aplicam injeções, medem, pesam as pessoas e distribuem remédios.

Entre os adultos, chama atenção a quantidade de crianças. Bebezinhos de colo aos montes, todos lindos e cheirosos, afinal é dia de consulta e das dolorosas injeções. Um choro aqui outro ali. As mães amamentando e embalando os nenes. apreensivas com a dor das picadas nas pernas roliças. Só mães, não vi nenhum pai. Poucos homens em geral precisaram de médico naquela manhã.

Na televisão, uma nova campanha para as meninas de 10 a 14 anos se imunizarem contra o HPV. Na capela, mulheres saem com a receita de cremes vaginais contra a bacterias simples ou quem sabe seja HPV? Não há exame. A médica é clinica geral, médica da famíla, faz o que pode, visivelmente com muito carinho. Não há injeções preventiva para os meninos? Eu me pergunto do outro lado da televisão.

Um homem me fala sobre o grande índice de jovens grávidas nos quilombos. Ao seu lado, no banco da igreja, uma menina com uns cinco ou seis meses de gestação. "Tá vendo essa menina aqui?" Eu olho pra ela e ela olha pra mim. "Tem 17 anos". Ela fica séria, incontáveis vezes ouviu este comentário desde que engravidou. Eu me pergunto, cadê o pai pra dividir as horas que não passam naquele banco de espera? Cadê o pai pra ouvir os comentários sobre o futuro de seu filho? O silêncio da menina e o meu, não chega a ser cúmplice. Não nos conhecemos. Em comum desenvolvemos a capacidade de optar rapidamente entre responder ou não à agressões como esta. Naquela ocasião, calamos. Mas nem sempre, por isso esse texto.






domingo, 15 de março de 2015

Morrer é uma festa















- O que são essas bebidas aí?
- É assim, vamos imaginar que hoje morre uma pessoa. Se está tendo um jogo de futebol no momento em que a família começa a espalhar a notícia do falecimento, todos param. Tudo pára. Os familiares começar a ir atrás de bebida e comida. Muita comida pra dar pro povo. Se por acaso não têm dinheiro pro caixão, cada um dá um pouco. Aí, a noite inteira ficam velando o corpo, bebendo cachaça e vinho. Muito. E jogam também. Dominó e baralho. Aí um solta uma piada aqui, outro dá uma risada ali. Morrer aqui é uma festa.

Regiane Nogueira, quilombo Arenhenguaua, Alcântara, Maranhão
















Fotos: Ana Mendes (cor) e Valda Nogueira (p&b)

sábado, 14 de março de 2015

Dos trinta, um

Servulo Borges, conhecido como Borjão, Alcântara, Maranhão.

Existe uma geração de meninos em Alcântara e arredores que não desfrutam mais os doces anos, mas ficaram reconhecidos e tiveram sua trajetória marcada por uma decisão que tomaram quando jovens. Com o incentivo dos pais, que poucas alternativas viam para os filhos, trinta meninos saíram do interior do Maranhão, no município de Alcântara, para estudar durante seis meses em São Paulo. Esta iniciativa fez parte da estratégia de persuasão para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), nos anos 80. "Voltamos pra casa com os valores do sul. Farda de botão dourado, dinheiro no bolso. Aí, qual é o pai que vai ter coragem de dizer que este projeto é ruim?", conta Servulo Borges, um dos meninos escalados pra viagem, hoje com 52 anos. 

O papel dos garotos era fazer o corpo a corpo com a comunidade no processo de convencimento. E então, o projeto era vendido como se fosse totalmente harmônico com as populações locais. "Nós fomos os 'piotários', os primeiros otários. Só a partir de 87 fui perceber que aquilo era uma furada", completa Borges, que hoje é uma liderança ativa, totalmente dedicado às demandas das quase 300 comunidades quilombolas de Alcântara.

Borges é casado com Eliete, os dois não tem filhos e a vida é então exclusivamente organizada em função da luta pela titulação dos cerca de 90 mil hectares. E também pra cuidar de uma diabete que desenvolveu no decorrer dos anos. "Meu sangue é doce", ele diz espantando os mosquitos e rindo. E de sangue doce, sem mágoas dos companheiros enfatiza "dos trinta soldados, o único que teve coragem de sair e dizer que este projeto foi e é ruim, fui eu."

Texto e foto: Ana Mendes

Porque fotografar o Maranhão?

Você já foi seis vezes a Alcântara, no Maranhão, fotografar os quilombos, porque está voltando lá?
Ripper: Eu estou retornando a Alcântara pra rever algumas populações que já documentei outras vezes. O que me chama atenção lá é que as mulheres têm destaque especial na luta. Tanto em sua função arquetípica de cuidar dos filhos e da casa quanto como pessoas que empurram os homens e a comunidade pra luta.